A 1ª vez de Arya Stark e a prova de que o sexo ainda é um tabu social
Não estamos na Idade Média, mas muitos de nossos pensamentos continuam bastante retrógrados.
Muita coisa já aconteceu em Game of Thrones. Muita mesmo. Casamento arranjado, casamento infantil, estupro, incesto, mas nenhuma dessas coisas parece ter chocado tanto quanto o fato de que Arya Stark (Maisie Williams) teve sua primeira vez. E se tratando do seriado, isso ter acontecido na última temporada pode ser considerado surpreendente. GoT tem muitas cenas de sexo e o público já deveria estar preparado… Não estava. Algumas pessoas, inclusive, ficaram ofendidas com o fato de que a irmã de Sansa transou. De acordo com a própria HBO, que se sentiu na obrigação de esclarecer a idade da personagem antes que a cena fosse ao ar, já imaginando que poderia “dar ruim”, a Stark tem 18 anos. Será que isso é realmente tão preocupante ou essa reação exagerada só prova que, dentre tantas outras coisas, o brasileiro desconhece a própria realidade?
Em 2017, uma pesquisa realizada pela Carmita Abdo, psiquiatra e professora da Faculdade de Medicina da USP, mostrou que os jovens iniciam a vida sexual dos 13 aos 17 anos. É verdade que a Geração Y está transando menos, mas a primeira vez continua rolando durante a adolescência. Isso não deveria ser motivo de choque, mas o dado seguinte sim: os levantamentos mostram que a maioria dos jovens brasileiros começa a vida sexual mal informada e com dúvidas. Isso não deveria acontecer, mas acontece exatamente por isso: as pessoas ainda condenam o sexo e, consequentemente, ele continua sendo um tabu, “algo-que-não-deve-ser-nomeado”.
A questão é sociocultural. O Brasil foi colonizado por cristãos e, durante muito tempo, o cristianismo foi uma das religiões mais fortes do mundo, e ditou muitas crenças e muitos costumes, que continuam no nosso imaginário até hoje, mesmo que já tenhamos nos afastado deles ou da religião em si. Segundo o modelo cristão-cultural, o sexo existe para a procriação, para a constituição da família. Qualquer ato que esteja estritamente ligado ao prazer, como a masturbação e o sexo casual, é visto como pecado. E vamos combinar que o que mais ocorre em Game of Thrones é sexo casual, né?
Em 1905, o psicanalista Sigmund Freud pulicou um livro chamado Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Dentre suas muitas colocações, ele diz que a sexualidade está atrelada ao ser humano desde a infância, que nossa sexualidade não nos faz mais ou menos puros e que uma vida sexual ativa e segura pode inclusive trazer benefícios à saúde. Ciência e religião, contudo, parecem não se entender até hoje – e algumas da razões são bastante óbvias, como já vimos aqui anteriormente.
Mas voltemos a GoT. A série é situada na Idade Média, uma das épocas mais sangrentas da História, dominada pela Igreja Católica. Em contrapartida, repare, por exemplo, como a questão do corpo, do prazer carnal e da liberdade sexual é vista por Melisandre, por exemplo, uma sacerdotisa do deus vermelho R’hllor, ou por Ygritte, uma selvagem (aliás, por trás desse nome há várias mensagens subliminares). Não existe o tabu criado pela ideia de que relações sexuais só servem para a reprodução humana. Exatamente por isso, é compreensível que muitos cristãos não assistam ao seriado e preguem contra ele.
Trabalhar com crenças é sempre delicado, por isso, não se sinta ofendido caso você realmente acredite no que o cristianismo prega sobre o sexo. Cada um escolhe no que acreditar ou não. Mas algo incontestável é que, para tomarmos uma decisão, é preciso termos informações, prós e contras. O choque generalizado com a primeira transa de Arya Stark prova que, além de as pessoas não terem – ou não quererem ter – a mínima noção de realidade e de que adolescentes transam, o sexo é algo que assusta mais do que o fato de a jovem personagem já ter matado. A reação exagerada de certas pessoas ainda é o retrato de como invertemos determinados valores. Arya é uma menina empoderada, forte, guerreira e aplaudida quando está com a Agulha na mão. Arya é “só uma menina” e até mesmo “uma criança” quando faz sexo consensual – algo natural, do ser humano, independentemente da finalidade, que deveria ser encarado com mais naturalidade que um assassinato, um estupro, um incesto.
Para o sexo deixar de ser um tabu em nossa sociedade é preciso que (1) ele seja retratado também com naturalidade nas artes, seja no cinema ou na televisão, (2) as pessoas tenham informação sobre o assunto e não tenham medo ou vergonha de falar sobre ele, seja em casa ou na escola e (3) as pessoas respeitem as escolhas de cada um, o espaço, o corpo, o prazer e não queiram impor suas “verdades absolutas”.
Não adianta botar a culpa na idade ou problematizar algo que, na real, nem precisa ser problematizado: Arya transou, seus pais transaram, seus avós, você talvez já tenha transado e, se não transou, talvez transe algum dia, quando, assim como a personagem, ficar curiosa o bastante e se sentir pronta. E esperamos que, quando acontecer, você esteja preparada, informada e saiba minimamente o que te espera. Porque, apesar do que algumas pessoas parecerem pensar, nós não estamos mais na Idade Média, e os pergaminhos e cartas perderam lugar para a internet. As pessoas crescem – mesmo que muitas continuem pequenininhas – e o mundo está em constante expansão – mesmo que muitas pessoas ainda queiram construir muralhas.