Eu, Sofia Duarte, repórter de moda e beleza da CAPRICHO, me formei em jornalismo em 2020 e, como Trabalho de Conclusão de Curso, escrevi um livro-reportagem sobre mulheres que foram vítimas de relações abusivas, que intitulei Marcas (In)visíveis: Mulheres que viveram relacionamentos abusivos. Diante da pandemia, fiz o projeto todo à distância e conversei com mulheres jovens, de 18 a 29 anos, de várias realidades e regiões diferentes do Brasil. Essas personagens, que me contaram suas histórias de violência, e todos os entrevistados, como psicólogos, advogados, antropólogos e outros especialistas, enriqueceram a minha visão sobre o tema e contribuíram para que eu aprendesse muito a respeito do sistema patriarcal e sua conexão com os abusos românticos sofridos por mulheres, especialmente em relacionamentos heteroafetivos.
Nesta matéria, decidi dividir com vocês alguns desses ensinamentos tão valiosos para a minha vida como jornalista, cidadã e, sobretudo, como mulher.
1. As raízes do abuso são muito mais profundas do que imaginamos
O olhar masculino, branco e hétero transcende todas as áreas da organização civil e impregna até o Estado. E essa estrutura influencia a nossa criação desde a infância. Os estereótipos enraizados na sociedade colocam o papel da mulher voltado para a família, para o lar e para o marido. Enquanto isso, os homens são socializados para serem bem-sucedidos na vida profissional e terem atitudes autoritárias que demonstrem controle e poder.
Uma das consequências de séculos de construção do que é “ser homem” e “ser mulher” é um complexo de inferioridade das figuras femininas em comparação às masculinas, o que pode ficar em evidência em envolvimentos românticos. Levando isso em consideração na minha pesquisa, percebi que as conquistas feministas são muito recentes e que ainda estamos distantes de desconstruir e reconstruir funções tradicionalmente impostas aos gêneros masculino e feminino.
2. Na teoria, as mulheres têm direitos, mas na prática não é bem assim
A Lei Maria da Penha, vigente no Brasil, é considerada pela ONU uma das mais completas e avançadas do mundo quando se trata de proteção a mulheres vítimas de violência doméstica. No entanto, apesar de prever a elaboração de políticas públicas que auxiliam as vítimas, muitas delas ainda não alcançam todo o território brasileiro. Delegacias e juizados especializados e casas-abrigo estão indisponíveis na maioria dos municípios do país.
Além disso, hoje temos um Estado extremamente negligente a medidas que envolvem os direitos humanos. O governo de forma geral e o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado por Damares Alves, costumam fazer campanhas focadas na denúncia da violência, mas não pensam no acolhimento das mulheres e nos suportes de várias ordens (como psicológico e jurídico) que deveriam ser oferecidos depois disso.
3. Mulheres negras sofrem dupla opressão
A violência doméstica contra as mulheres é conhecida por seu caráter democrático – basta ser mulher para estar sujeita às agressões. Mas já provou-se pelas estatísticas que as mulheres negras se encontram em uma posição de vulnerabilidade que permite maior exposição à violência.
Além do determinante social de gênero, elas lidam com a opressão de raça e, muitas vezes, com a de classe também. Enfrentam, ainda, estereótipos que acabam normalizando a violência. Os principais são: a preta forte e agressiva, que cria a imagem de uma figura independente e corajosa, e a da “mulata” que exibe sensualidade e provoca a atenção masculina, o que resulta em casos de assédio e violência sexual.
4. É preciso falar com os homens
O comportamento considerado tradicional para os homens vem do patriarcado e afeta meninos, adolescentes e adultos que fogem do padrão heteronormativo, prejudicando, inclusive, a saúde mental deles. Ou seja, esse sistema, ainda que em menor grau e de formas diferentes, também é nocivo para os homens.
Existem grupos reflexivos voltados para a discussão das masculinidades que recebem homens que, de forma voluntária, participam dos encontros a fim de terem sua pena reduzida. O propósito dessas iniciativas não é anular a responsabilização dos agressores. Pelo contrário! Trata-se de uma estratégia eficiente a longo prazo, porque consegue evitar a reincidência dos abusos ao mudar o comportamento violento dos homens por meio de aulas, atividades e exercícios que os fazem entender as raízes do problema.
Ou seja, os homens devem, sim, fazer parte desse debate para repensarem suas atitudes e, a partir disso, se tornarem uma semente de transformação, podendo até corrigir outros homens que fizerem uma piada machista na roda de amigos, por exemplo.
6. A cobertura da mídia ainda é falha
Muitos meios de comunicação tradicionais reproduzem discursos hegemônicos, moldando a opinião pública de acordo com valores permeados pelo patriarcado. Reportagens em jornais e emissoras de televisão ainda dizem que agressores “agiram por amor”, tiveram “crises de ciúme” ou um “surto de loucura”, evitam a palavra “feminicídio” e não promovem discussões profundas a respeito do tema, descredibilizam as denúncias das vítimas e espetacularizam casos de violência doméstica – a exemplo do famoso sequestro de Eloá, que aconteceu em 2008. Em sua grande maioria, a cobertura da mídia ainda é acrítica, irresponsável e cúmplice dos crimes contra as mulheres.
Estes foram apenas cinco das dezenas de coisas que aprendi me debruçando nesse assunto durante um ano inteiro. As vivências das vítimas entrevistadas, que não couberam aqui, também me ensinaram e me tocaram muito.
Infelizmente, ainda não tive a oportunidade de publicar o livro-reportagem da forma como eu queria, que incluía fazer versões impressas e digitais. Várias editoras com as quais entrei em contato quiseram mudar o livro, excluir depoimentos importantes, como o da YouTuber Dora Figueiredo, e até mexer na ilustração da capa. Mas, o meu objetivo é divulgar esse trabalho na íntegra (exatamente como está – avaliado e aprovado pela minha banca) para que ele alcance diversas pessoas, provocando uma reflexão necessária e urgente para a nossa sociedade.