Neste exato momento acabo de realizar um sonho de quando eu tinha 15 anos. Escrever para a CAPRICHO. Isso sempre me pareceu um daqueles sonhos que a gente escreve no papel, guarda no cantinho mais bonito do coração e torce para um dia conseguir realizar. Pois é, nunca imaginei que eu teria essa oportunidade tão incrível de falar com vocês sobre um assunto tão pessoal. Estou aqui para dividir um pouco da minha vivência sendo uma descendente de asiáticos no Brasil.
Eu sou a Melissa Ery, uma asiática brasileira. Descendente de japoneses da terceira geração. Eu nasci e cresci aqui no Brasil e tive que me descobrir (e ainda estou me descobrindo) como uma menina não branca.
Dos 3 aos 6 anos estudei em uma escola de freiras católicas japonesas, e, por isso eu praticamente vivia a cultura japonesa 24h por dia. Apesar de falar em português dentro de casa, eu era alfabetizada em japonês e aprendia os costumes e tradições da cultura japonesa na escola.
Quando completei 6 anos, entrei na 1ª série e foi aí que tive um grande choque de realidade. Saí de uma escola pequena de uma turma de mais ou menos 10 alunos, todos descendentes de asiáticos, para uma escola grande com uma turma de quase 40 alunos sendo a única descendente.
Entrar em uma escola onde eu era a única asiática da sala da 1ª a 4ª série foi um pouco assustador. Lembro que as crianças sempre me olhavam como se eu fosse “uma atração”, eu era “a diferente”. Professores e alunos nem se quer perguntavam o jeito certo de se pronunciar o meu nome e, quando erravam, todos riam como se fosse algo muito engraçado. Receber apelidos como “japa”, “japinha”, “olhinhos puxados” e “arigatô” eram muito comuns no meu dia-a-dia. Eu me sentia mal com tudo isso, mas não entendia o porquê.
O que sempre dividiu a minha atenção e acabou afetando a minha memória nos tempos de escola foram as atividades extracurriculares. Eu fazia escola de japonês, kumon (um método de ensino que tem como objetivo o domínio sobre uma matéria, a autonomia da criança e o autodidatismo), inglês e escoteiro. Todas essas atividades extras me mantinham mais próxima da cultura japonesa, porque eu me identificava muito mais com as outras crianças desses círculos (a maioria também descendentes). Elas me faziam sentir muito mais acolhida e confortável.
(O Eric, Monge Han, ilustrou um quadrinho maravilhoso sobre ser uma criança amarela no Brasil. Eu me identifiquei muito com ele e resolvi compartilhar com vocês).
Inconscientemente tudo isso acabou afetando a minha construção de identidade. Infelizmente a sociedade cobrava que eu fosse uma garota dócil, fofa, dedicada, submissa e inteligente o tempo todo. Essa cobrança de ser uma pessoa que cobram que eu seja acontece até hoje, e fica mais claro quando alguém projeta em mim uma imagem de uma garota asiática baseada nos estereótipos vendidos pela mídia.
Os anos foram passando e, apesar de eu ter mudado de escola diversas vezes nesse meio tempo, algumas dessas situações continuaram se repetindo. Lembro que da 5ª a 7ª série foram os anos que eu mais sofri com atos racistas de colegas de classe. Um garoto da minha sala descobriu o meu sobrenome e começou a fazer piadas com ele, e toda vez que ele me chamava (pelo sobrenome errado) todos riam, e eu ficava sem graça. Corrigia, mas era silenciada com um “tanto faz, é tudo a mesma coisa”. Também rolavam comparações com personagens de desenhos como Sakura Card Captors, Yugi-Oh, Pokémon, entre outros. Mas acho que o pior de tudo era ser apelidada de “japa”, porque quando me chamavam de “japa” eles ignoravam o fato de que eu tinha tinha um nome.
Na época eu não entendia o porquê de todas as situações me deixarem constrangida, mas, de uma maneira esquisita, eu sentia que algo não estava certo.
Quando entrei na faculdade, pensei que aí, sim, as coisas seriam diferentes, afinal, eu imaginava que as pessoas estariam mais informadas. Mas me enganei logo de cara. No dia do meu trote, um veterano resolveu que seria engraçado apelidar as meninas e escrever nos braços delas os apelidos. Assim que ele olhou para mim, ele gritou “pastel de flango” e todas as pessoas que estavam em volta começaram a rir enquanto eu saía andando muito chateada.
Pior que não parou por aí. Parece que quanto mais você se informa, mais esses tipos de comentários te machucam. Cada dia que passava eu precisava driblar os comentários de mal gosto como “como você enxerga com esses olhos tão pequenos?”, “como fala tal palavra em japonês?”, “você só come sushi na sua casa?” ou “olha seus parentes” (quando algum asiático passava por perto), entre outros que eu vou deixar para uma outra matéria.
O processo de descoberta e aceitação de que eu era uma garota amarela foi (e continua sendo) libertador, chocante e assustador, tudo ao mesmo tempo, porque não é fácil abrir feridas não cicatrizadas, encará-las e principalmente tentar entendê-las.
Assuntos como racismo contra asiáticos, falta de representatividade na TV e na mídia, yellowface, feminismo asiático e a fetichização da mulher asiática foram as minhas primeiras pesquisas para a construção da minha identidade como uma mulher amarela.
Após morar no Japão, mais dúvidas e curiosidades martelaram a minha cabeça e por isso eu vou continuar sempre buscando informações para me empoderar e entender cada vez mais.
Eu sei que nós, garotas amarelas, possuímos muitos privilégios, mas infelizmente não estamos livres de preconceitos, e é por isso que devemos nos apoiar, quebrar esses pré conceitos e nos dar forças umas às outras.
Bom, nesse espaço eu vou compartilhar com vocês todas essas minhas novas dúvidas, curiosidades, vivências e experiências. Mas também quero saber sobre o processo de aceitação e descoberta de vocês, então vamos trocar histórias? Para quem quiser conversar comigo, sinta-se à vontade para me mandar um e-mail (melissa.sakaguchi@abril.com.br) ou me chamar para conversar pelo Facebook ou Instagram (ambos @MelissaEry).
Um beijo,
Melissa Ery