De Under Pressure a Heroes, passando por Rebel, Rebel e Ashes to Ashes, David Bowie produziu músicas que continuam marcando gerações. O britânico, que faleceu em 2016, foi um ícone de estilo e referência nos anos 70 e 80. Apelidado de “camaleão do rock”, ele teve várias fases e foi considerado por muitos alguém estranho, esquisito, de outro mundo, fora do padrão. Hoje, em 2020, ele segue vivo no imaginário das pessoas, como no de Marcela Mattos, estudante de jornalismo, de 25 anos, que leva Bowie como uma inspiração.
Com 28 dias de vida, Marcela foi submetida a uma cirurgia para remover um teratoma no lugar do olho esquerdo, um tumor raro que acomete menos de 15 mil pessoas no Brasil. O procedimento foi necessário para que hoje a estudante estivesse aqui, dando essa entrevista para a CAPRICHO. Por causa da doença, a paulistana perdeu o olho esquerdo e a deficiência já foi uma grande barreira para a jovem, principalmente durante a adolescência, quando usava a icônica franja emo para esconder a falta do olho. “Foi de longe a fase mais difícil, porque as pessoas prezam muito pela aparência. É muito difícil você ver um adolescente falando que gosta mais do interior da pessoa que do exterior dela. Na escola, sofri muito bullying. As pessoas falam que a escola é o momento mais importante da vida, que você faz amigos para sempre, mas ela só detonou comigo. A maioria das pessoas que conviveu comigo são pessoas que eu dificilmente tenho algum tipo de contato hoje, porque elas destruíram muito minha autoestima, não só pela deficiência, mas por eu sempre ter sido fora do padrão. Eu nunca fui magra e isso sempre foi muito determinante no colégio”, conta a futura jornalista.
Apesar de não terem o mesmo ídolo e morarem bem longe uma da outra, as histórias de Marcela Mattos e Jess Van Zeil se assemelham em muitos aspectos. A australiana, de 26 anos, também foi diagnosticada com câncer, só que aos 21 anos de idade. Por causa do melanoma ocular, ela perdeu também o olho esquerdo. “Estou estável há quatro anos, mas não digo que estou curada. Alguns pontos irregulares ainda podem ser identificados no meu cérebro, entretanto eles permanecem iguais há todo esse tempo, o que significa uma boa chance de que continuem assim”, conta a jovem.
Enquanto a brasileira encontra na arte da tatuagem uma forma de se sentir mais bonita e de se expressar usando seu próprio corpo, a australiana se apoia na escrita para superar os medos, as inseguranças e inspirar outras pessoas. A autora do livro Eye Won: Powerfully Positive, Ridiculously Resilient (“Olho Vencedor: Poderosamente Positiva, Ridiculamente Resiliente”, em tradução livre) garante que a arte da escrita foi uma maneira que encontrou de seguir em frente. “Escrever me fez refletir mais intensamente sobre a experiência pela qual passei e me fez entender em níveis mais profundos como ela me ajudou a crescer como pessoa. Escrever o livro fez eu me sentir empoderada. Eu escrevi aquilo que eu desejava ter lido enquanto enfrentava a doença, para me sentir menos perdida, sozinha e com medo das mudanças“, explicou para a CH.
Jess VZ, que se nega a adicionar filtros nas fotos que posta no Instagram e não liga em aparecer sem maquiagem na rede social, acredita que “nenhum de nós tem controle sobre certas coisas que acontecem na vida, mas que todos temos o controle de escolher como reagir a elas” – inclusive, como reagir aos padrões de beleza. Por muito tempo, eles afetaram Jess durante o tratamento, quando ela engordava e emagrecia com bastante frequência. Levou um bom tempo para que ela conseguisse enfim realizar um trabalho de desenvolvimento pessoal e se amar do jeitinho que é. Até hoje, os padrões afetam Marcela Mattos, não apenas os estéticos. Além de ser deficiente, a estudante é bissexual. “Eu tenho o privilégio de ter uma limitação que não me impede de fazer a maioria das coisas e eu sou uma mulher branca, o que já torna minha vivência mais privilegiada no Brasil. Ser gorda menor também tem seus privilégios. Eu, por exemplo, consigo passar numa catraca de ônibus sem maiores dificuldades. Ser LGBTQIA+ é onde pega mais na minha autoestima, porque sempre escuto comentários depreciativos sobre minha bissexualidade. Já ouvi dizer que não ficariam comigo porque eu era vetor de doenças“, revelou.
A aceitação é um processo longo e tortuoso, com altos e baixos, que dura uma vida inteira. Marcela e Jess sabem disso. “Padrões de beleza são ridículos. Eles existem para fazer com que todas as mulheres se sintam constrangidas pela aparência de seus lindos corpos, e para impulsionar o consumismo e as vendas de produtos. Seu valor não é medido pelo tamanho do seu corpo ou por quantos olhos você tem. Você vale tão mais que isso! Você é bonita porque você é única!”, declara a australiana. A estudante brasileira, apesar de hoje se sentir muito mais empoderada e confiante, ainda trava suas batalhas internas: “Meu psicológico sempre fica muito abalado quando vejo mulheres dentro do padrão, principalmente com relação aos relacionamentos. Sempre foi mais difícil por eu não ter um olho, daí eu comecei a engordar… Comecei a fazer dietas restritivas… Uma vez eu chorei porque eu estava comendo um lanche. Ninguém tem que ficar chorando porque tá comendo um lanche, sabe?“. Apesar dos pesares, ambas concordam que a deficiência não é o foco e que a arte é essencial na vida de todos.
Entre o Paraguai e o Alto Paraná, Mónica Leguizamón, de 18 anos, tem uma história de vida que se cruza com a das outras duas mulheres. Apesar de ser uma modelo dentro dos padrões, ela também tem uma deficiência, causada por um tumor maligno ocular, diagnosticado aos 13 anos. A estudante de Artes, que segue com a doença em quadro estável, tem 180 mil seguidores no Instagram e faz uso da maquiagem para se expressar e empoderar. Inclusive, Mónica tem uma legião de fãs brasileiros. Seu maior sonho é ser reconhecia um dia como artista. Ela também tem uma loja online, a Moli, acredita que a arte salva vidas e tem como lema a seguinte frase: “Seja seu próprio padrão de beleza”.
Três mulheres, três histórias diferentes mas similares em tantos aspectos, com vivências diversas mas que se complementam. Seja no Brasil, no Paraguai ou na Austrália, o mundo precisa de figuras como as de Marcela, Jess e Mónica, que lutam contra os padrões impostos pela sociedade, tanto os de beleza quanto os comportamentais, exaltam a arte e inspiram milhares de pessoas durante seus processos individuais de autoaceitação. “Em muitos momentos, os padrões de beleza foram a razão pela qual eu fiquei tão assustada com minha cirurgia, porque eu sabia que ser diferente poderia significar não ser tão aceita, ser menos respeitada e amada“, relata Jess, que tem a fala complementada pela de Marcela: “O feminismo tem o dever de ajudar as mulheres a se sentirem bem com elas mesmas e donas de si. Temos que ficar bem e acolher outras mulheres, para que todas se sintam inseridas. O movimento hoje não abraça todo mundo nem aceita, principalmente as mulheres que fazem parte das minorias. O seu feminismo chega nas periferias? Ele conversa com mulheres gordas? Com deficientes? Ou oferece um espaço mínimo a elas?”, questiona.
“We can be heroes, just for one day…”