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Exposed parties: as redes sociais podem ser aliadas, mas é preciso cuidado

As exposed de abusos sexuais não substituem denúncias formais, mas têm função terapêutica e mostram força da sororidade contra ineficiência do Estado

Por Isabella Otto Atualizado em 25 jun 2020, 16h43 - Publicado em 24 jun 2020, 16h31
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CAPRICHO/Divulgação

Foi no dia 17 de maio que o Twitter “Voz da Mulher Niterói” fez sua primeira postagem na rede social. A conta, que havia sido criada para incentivar meninas do município do Rio de Janeiro a contarem seus relatos de abuso sexual, iria expor casos de violência contra a mulher e ajudaria as vítimas oferecendo suporte. Apesar de a página incentivar denúncias anônimas, para evitar problemas judiciais, o que vimos foi uma onda de meninas desabafando sobre os abusos sofridos e, em muitos casos, expondo o agressor com nome, sobrenome, idade e CPF. “Muitas mulheres começaram a ter coragem de falar sobre seus agressores, descobrindo nomes em comum de caras que já tinham cometido abusos. Elas perderam o medo de se abrir e perceberam que não estavam sozinhas. Isso incentivou muitas de nós a fazer denúncias formais. O que começou como algo pequeno se tornou um movimento lindo e enorme”, contou em entrevista para a CAPRICHO uma das adolescentes de Niterói que relatou seu caso de assédio na página (sua identidade foi preservada).

Algumas exposed parties do Twitter denunciando crimes de assédio e estupro Twitter/Reprodução

Faz pouco mais de um mês que o Twitter se transformou em um “tribunal de justiça” e, com uma frequência assustadora, mas que apenas retrata a realidade da mulher brasileira, relatos de garotas que foram abusadas e estupradas, por famosos e anônimos, se tornam um dos assuntos mais comentados da plataforma. A jovem T.B., de 18 anos, moradora de Brasília, viu seu nome nos Trending Topics após denunciar a violência sofrida quando era menor de idade. Antes de publicar seu relato, ela conversou com a irmã, que é advogada e deu todas as instruções para fazer isso com o máximo de segurança possível: sem divulgar nome ou fotos do agressor. “Mesmo assim, fiquei com medo e pensei em apagar os tuítes, porque, mesmo sem expor o nome dele, fui ameaçada”, disse. Apesar do medo, T.B. acha que as exposed no Twitter podem fazem a diferença, “ajudar a abrir os olhos de outras meninas e impulsionar o número de denúncias”.

A CAPRICHO entrou em contato com outra garota que fez uma exposed e viu seu nome também ir parar nos TT’s. O caso aconteceu durante um aniversário e o assediador foi um garoto do grupo de amigos da adolescente. “Por conhecer todo mundo [na festa], me senti bem à vontade para beber sem me preocupar com qualquer coisa. Fui me sentar no sofá onde estava esse menino e começamos a conversar. Nos beijamos, e até aí foi tudo consentido. Depois, fomos nos sentar na rede, num lugar mais reservado. Só que comecei a passar mal, fiquei tonta e com vontade de vomitar, e falei que queria só descansar. Imóvel, senti ele começar a acariciar meus seios. Ele percebeu que não tive reação e disse: ‘Nossa, você morreu mesmo’. Mas, em vez de ir chamar alguma amiga para me ajudar, vide meu estado, continuou passando a mão em mim. Eu tentava me mexer, mas não conseguia. Ele desabotoou meu short, colocou a mão dentro da minha calcinha, começou a me tocar e a esfregar minha mão em seu pênis. Não sei quanto tempo isso durou. Quando consegui enfim me recuperar, contei o que tinha acontecido para duas amigas. Estava chorando muito, bastante nervosa. A história acabou circulando pela festa mas, depois de uns 15 minutos, todos já haviam esquecido e o garoto saiu ileso. Até hoje preciso tomar remédio por causa do trauma. Mais tarde, descobri que pelo menos 7 meninas já haviam sido abusadas sexualmente pelo rapaz”, relatou T.L., que, após a exposed no Twitter e a chuva de apoio emocional recebido, finalmente teve coragem de fazer uma denúncia formal na delegacia. “Não sei se vai dar em alguma coisa, a gente sabe como a justiça é falha e nem sempre está ao favor das mulheres, mas eu fiz minha parte e sou muito grata por ver quantas meninas tiveram coragem de contar o que aconteceu com elas a partir dos meus relatos. Isso me encorajou muito”, disse.

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As exposed parties que expõe assediadores mostram a força da sororidade. Para a Dra. Cintia N. Madeira Sanchez, professora de Psicologia da Universidade São Judas, ao expor sua história e ver que não está sozinha, a menina acaba se sentindo acolhida e aliviando a dor pela troca de mensagens. “A vítima de abuso sexual tem dificuldade de denunciar por estar traumatizada e sensibilizada com a situação, sente vergonha, medo e culpa pelo que ocorreu. O Twitter, nesse caso, tem uma função terapêutica que facilita falar sobre as experiências e dividir o sofrimento com outras meninas que tiveram a mesma vivência e compreendem como ela se sente. O único porém é que essa troca ocorre de forma informal, sem um profissional para mediar essas conversas e conduzir de forma adequada as reflexões”, alerta a especialista.

Apesar dessa rede de apoio online ser importante para muitas vítimas, a psicóloga ressalta que nem sempre o relato é bem recebido pela internet, principalmente porque vivemos em uma sociedade de desigualdade entre gêneros, em que homens e também mulheres defendem comportamentos machistas e ainda culpabilizam as vítimas, compactuando com a cultura do estupro. “A exposição online tem uma representação significativa para o adolescente que não consegue lidar com uma visão negativa de sua autoimagem. Ao expor seu caso de abuso sexual nas redes sociais, a vítima está expondo uma situação traumática que lhe causou sofrimento e dor para que todas as pessoas tenham acesso a sua história. Ao se expor publicamente como uma pessoa fragilizada, pode se colocar novamente em risco. A ajuda profissional não deve ser nunca substituída“, explica a Dra. Cintia, que alerta ainda que, nos programas de apoio às vítimas de abuso sexual, o agressor também recebe atendimento psicológico.

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Tuítes sobre o caso do garoto que teria cometido suicídio após exposed Twitter/Reprodução

Um caso que acabou viralizando como consequência dessas exposeds foi o de um menino que teria morrido por suicídio após seu crime ser exposto nas redes e ele ter sofrido linchamento virtual. A publicação teria sido feita por uma amiga. Fábio Zanão, sócio-fundador do Zanão e Poliszezuk Advogados, explica que essas exposições de intimidade nas redes sociais são questões novas que estão surgindo no meio jurídico e ainda não é possível cravar como a Justiça de 1º grau e o Superior Tribunal Federal vão lidar com elas. No caso desse garoto, que supostamente morreu por suicídio, dois alertas precisam ser feitos. “Imaginemos que a vítima expôs o caso no Twitter e fez também uma denúncia na delegacia. Por causa desse boletim de ocorrência, ainda mais se ela estivesse sofrendo ameaças pelo menino, ela não teria responsabilidade [pela morte]. Agora, caso ela tenha exposto o abusador na rede, mas não tivesse feito uma denúncia formal, e a família alegasse que o suicídio aconteceu por causa da exposição, ela poderia ter que pagar uma indenização, levando em conta o dano e o nexo de causalidade”, dá o advogado o ponto de vista legal sobre o caso.

Outro alerta que o profissional faz com relação a essa onda de exposições na internet é que elas podem trazer riscos para a vítima, por mais que ela tenha feito o relato na melhor das intenções. “Se a garota mencionar que sofreu abuso por parte de um primo, por exemplo, expor o nome ou o @ do primo, e a justiça entender que ela não tem como provar o crime, caso o primo recorra às autoridades, a jovem pode vir a sofrer uma ação de danos morais“, explica o Dr. Fábio, que dá mais um conselho levando em conta questões legais: “O correto mesmo é não expor, procurar ajuda psicológica e a Justiça”. Caso a jovem queira fazer uma exposed no Twitter porque acredita que ela possa trazer benefícios individuais, a dica é tomar o máximo de cuidado possível, ou seja, não expor a identidade do acusado.

“Tem que expor abusador mesmo”

Nas redes sociais, é muito comum que as pessoas se mobilizem em prol das vítimas usando a frase acima, principalmente quando o abusador é um homem branco, rico e influente – um tipo mais facilmente protegido pela Justiça e por veículos de comunicação. Contudo, trazendo essa discussão para o cenário das exposed parties no Twitter, há ressalvas. Ao expor o agressor, com nome, sobrenome, idade e CPF, a vítima pode acabar ficando ainda mais vulnerável. Como foi o caso da T.B., de 18 anos, que, mesmo tomando todos os cuidados na hora de publicar seu caso na rede social, recebeu ameaças do garoto que havia abusado sexualmente dela, que acabou descobrindo a exposed e percebendo que era sobre ele. É muito importante que a vítima se resguarde o máximo possível para que sua segurança não fique comprometida. Afinal, já bastam os danos psicológicos. “Os impactos de um assédio sexual na vida da menina variam. Algumas podem apresentar mínimas alterações comportamentais e emocionais, enquanto outras desenvolvem transtornos psicológicos significativos, como transtornos de humor, de ansiedade, hiperatividade, déficit de atenção e até mesmo depressão”, alerta a psicóloga Cintia Madeira.

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Por mais criminoso que o ato tenha sido, o “tribunal da internet” não pode ser palco para incentivos de suicídio. Isso é muito preocupante. Nós não devemos passar pano para episódios de violência contra a mulher nem agressores, mas, conforme salienta Fábio Zanão, cabe à Justiça julgar o caso, por mais falha que ela possa ser. De acordo com a lei 13.968 do Código Penal brasileiro, induzir ou instigar automutilação e tentativa de suicídio é crime, com penas que variam de um a 6 anos de prisão, bem como assédio, importunação sexual e estupro também são crimes previstos em lei. Se a vítima for menor de idade, o que é chamado de Estupro de Vulnerável, a punição pode variar de 8 a 12 anos de reclusão. Em caso de morte, a pena pode aumentar para até 30 anos.

 

Justo? Suficiente? Sabemos que não. Em 2017, por exemplo, um juiz mandou soltar um homem que havia ejaculado numa mulher no ônibus, alegando não ter havido constrangimento nem grave ameaça contra a vítima. Quantos outros criminosos, que estupraram e cometeram feminicídio, não foram inocentados pela Justiça ou soltos antes mesmo de a pena chegar ao fim? É revoltante, embrulha o estômago, dá medo e vontade de sair expondo geral mesmo, mas, por uma questão de zelo com a vítima é preciso tomar certos cuidados.

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No mais, é importante saber que é possível denunciar violações no Twitter, como postagens de comportamento abusivo e ameaças violentas. Para isso, basta clicar no “V” que tem ao lado da mensagem e selecionar a opção “Denunciar Tweet”. Além disso, é extremamente importante que casos de assédio sejam devidamente notificados. É possível fazer denúncias anônimas no Disque 100 (em caso de violência sexual contra menores de idade) e no Disque 180 (em casos de abuso e agressão contra mulheres). Crimes de estupro devem ser denunciados numa delegacia e é direito da vítima receber proteção das autoridades. Nesta matéria, damos mais detalhes de como denunciar um caso de abuso sexual, estupro e/ou agressão. #JustiçaPorTodas

Ponomariova_Maria/Getty Images

As redes sociais na busca por justiça

Não nomear o agressor, reunir provas do crime e registrar um boletim de ocorrência caso venha a sofrer ameaças são algumas das medidas básicas de segurança ao expor um caso de abuso na internet. Tomando esses cuidados, as redes sociais se tornam redes de apoio poderosas na luta contra a ineficácia do Estado e dá voz a vítimas tantas vezes silenciadas.

Elas também funcionam como uma ferramenta para pressionar as autoridades e manter o caso vivo, principalmente aqueles que demoram a ser solucionados, como os envolvendo crimes contra a mulher. De acordo com um levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, dos 1.273.398 processos abertos de crimes de violência doméstica até 2017, apenas 5% tiveram continuidade. Ou seja, pouco mais de 63 mil. “Com a falta de integração do processo penal com as políticas de proteção às mulheres [como acolhimentos por equipes psicossociais e o efetivo monitoramento das medidas protetivas de urgência], a vítima costuma pedir o arquivamento do processo”, explicou a juíza Rejane Jungbluth Suxberger, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em entrevista à Deutsche Welle Brasil.

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O caso da blogueira Mariana Ferrer, estuprada em 2018 em um famoso beach club de Santa Catarina, é um exemplo de como as redes podem ser aliadas da vítima. Em entrevista exclusiva publicada pela CAPRICHO em maio, Mari revelou que recorreu ao Instagram e ao Twitter após perceber que a Justiça estava obstruindo provas para favorecimento do denunciado/réu e dos envolvidos no crime. “Uma luta que era só minha passou a ser de todos. É uma luta contra o sistema”, disse a jovem de 23 anos que usa o clamor das redes sociais para não deixar o caso cair no esquecimento.

No Brasil, somente 35% dos crimes de estupro que ocorrem são registrados em delegacias. Desse número, 6% viram ação penal. Esse cenário reforça a importância do pedido do advogado Fábio Zanão: que as denúncias online não substituam as formais. Entretanto, se organizadas com sabedoria, as exposed parties podem funcionar como alertas, ter função terapêutica e encorajar mulheres a não mais se calarem e a buscarem ajuda.

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