Já faz algum tempo que a Argentina está sendo palco para manifestações e debates sobre a legalização do aborto no país. No ano passado, por exemplo, o tema recebeu bastante atenção quando o projeto foi aprovado na Câmara, embora tenha sido rejeitado pelo Senado mais tarde. Apesar disso, os protestos a favor não pararam. Aliás, muito pelo contrário. Protestos pedindo a legalização do aborto ganharam ainda mais força com os últimos acontecimentos no país. Um deles foi o caso de uma menina de 11 anos estuprada pelo marido da avó, que chegou a obter permissão por lei para realizar um aborto, mas foi submetida a uma cesárea forçada e sem consentimento pela médica, que se recusou a fazer a interrupção da gestação.
O caso aconteceu em fevereiro na província de Tucumán, na Argentina. Lúcia, de 11 anos, foi estuprada pelo marido de sua avó e a violência resultou em uma gravidez. O homem, de 65 anos, foi preso. A mãe da menina solicitou permissão para realizar um aborto, visto que o caso da filha se encaixava dentro do que a lei argentina determina para permitir o procedimento – apenas em casos de estupro, risco de morte da mãe e má-formação do feto. O pedido formal foi apresentado quando a menina estava na 19ª semana de gestação, mas a Justiça ainda levou mais três semanas para dar o posicionamento. Em depoimento, a própria garota implorou para que fosse feito um aborto. “Eu quero que você tire o que o velho colocou em mim”, Lúcia disse ao juiz.
Contudo, no dia em que o procedimento seria realizado, quase toda a equipe dos médicos presentes na sala de cirurgia alegou objeção de consciência, incluindo o anestesista. Ou seja, eles se recusavam a fazer algo que ferisse seus princípios religiosos, morais ou éticos. Depois, esses mesmos médicos que desistiram da operação argumentaram que a gravidez já estava avançada e que seria uma cirurgia de alto risco para a menina. A única médica que ficou na sala, Cecília Ousset, decidiu agir por conta própria. Em vez de realizar o aborto que já estava permitido por lei, ela resolveu fazer uma cesárea forçada sem sequer informar a mãe de Lúcia. A médica alegou que o aborto seria arriscado e que o corpo da menina não estava pronto para uma gravidez de 23 semanas, por isso não se podia esperar por um parto normal. Lúcia, então, foi submetida a uma microcesariana e deu à luz o bebê de cinco meses, que foi levado para a área de neonatologia do hospital.
A família de Lúcia e organizações sociais avaliaram a decisão dos médicos como “tortura”. “O direito à saúde não foi respeitado. Obstáculos e barreiras foram colocados. A prática legal foi atrasada e permitiu a progredir no processo de gestação e terminou como terminou”, afirmou o advogado Soledad Deza, do grupo Católicas pelo Direito de Decidir. “A vontade da menina tinha que ser levada em conta“, argumentou a advogada Cecilia de Bono, ressaltando que o pedido da garota e da família eram de interrupção da gravidez, não de um parto forçado.
Nas redes sociais e nas ruas, grupos de mulheres se organizaram para protestar contra esse tipo de situação usando a hashtag #NiñasNoMadres (Meninas, não mães), trazendo outros casos semelhantes à tona. No início do ano, uma menina de 12 anos da província de Jujuy também foi estuprada por um homem de 60 anos e estava grávida de 24 semanas quando passou por uma cesariana sem seu consentimento ou de seus pais, embora tivesse solicitado o aborto – que ela também tinha o direito por lei. A resposta foi adiada ao máximo e o bebê morreu dias depois do parto. No caso da Lúcia, o bebê também faleceu dias após o parto forçado.
Embora o direito ao aborto em alguns casos seja uma lei desde 2012, é comum que em algumas províncias do interior da Argentina, normalmente mais conservadoras, alguns médicos e profissionais da saúde se recusem a seguir a ordem da Justiça e realizar o procedimento. Por outro lado, a própria Justiça também anda de forma lenta e a demora em permitir o aborto faz com que, muitas vezes, a gestação fique avançada demais para que os médicos façam a interrupção. “O Estado é responsável por torturar Lúcia”, afirmou a organização #NiñasNoMadres.