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Não dá mais pra política ser só coisa de homem cis, branco, hétero e rico

Há um padrão que se repete na política, que não contempla as mulheres, 52% da população e do eleitorado brasileiro, e já passou da hora de ele mudar

Por Isabella Otto 14 nov 2020, 10h11
colecao capricho sestini mochila bolsas
CAPRICHO/Sestini/Divulgação

No último dia 7, Joe Biden foi eleito o novo presidente dos Estados Unidos, acabando com o sonho de Donald Trump de uma possível reeleição. O filiado ao Partido Democrata tem 77 anos, é advogado, homem branco, cis, heterossexual e rico. Trump, apesar de ser do partido rival, o Republicano, não tem um perfil físico muito diferente: empresário, 74 anos, homem branco, cis, heterossexual e bilionário. Assim é também Vladimir Putin, presidente da Rússia, no auge dos seus 68 anos como privilegiado, e Jair Bolsonaro, eleito presidente do Brasil em 2018, homem branco, rico, com 65 anos. À frente da China, temos Xi Jinping, com 67 anos, heterossexual, cis, rico e considerado o homem mais poderoso do país, o “imperador vermelho”. Este cenário mostra que à frente das principais potências mundiais temos um padrão que se repete há anos, por mais que as ideologias políticas e partidárias sejam diferentes.

CSA Images/GettyImages/Eraldo Peres (GTRES)/CAPRICHO

Em 2018, o G1 realizou um levantamento para mapear o perfil médio dos deputados federais eleitos naquele ano no Brasil. Sem novidades, homens brancos, casados e com uma média de idade de 50 anos se mostraram maioria. Entre os eleitos, apenas um era indígena (uma mulher) e dois eram amarelos. Hoje, 75% da Câmara é constituída por brancos, em suma homens heterossexuais. Este é o perfil da maioria no poder, que governa sem levar em conta a pluralidade daqueles que são governados. É justamente por isso que é urgente tornar esse cenário mais representativo e colorido.

Uma barreira socioestrutural

O Brasil é um dos piores países em termos de representatividade política, como alerta um estudo realizado pela ONG Inter-Parliamentary Union. Apesar de o número de mulheres no poder ter crescido nos últimos anos, ele ainda é bastante desigual. Nas eleições deste ano, temos 13% de mulheres concorrendo às prefeituras contra 87% de homens. Quando o assunto é a Câmara de Vereados, não é muito diferente. 34% das candidaturas são de mulheres contra 66% de homens. A falta de apoio dos partidos políticos é o principal motivo que leva uma mulher a não se candidatar a um cargo político, conforme aponta dados do Senado Federal.

Embora exista a lei de cotas eleitorais, “as mulheres não têm alcançado as esferas de poder do Estado de maneira igualitária, o que as deixa à margem dos processos de elaboração das políticas públicas. Ou seja, as mulheres não se encontram devidamente representadas nesse sistema político vigente”, como alerta reportagem, escrita por Karoline Florentino, do Politize!, uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos cuja missão é formar uma nova geração de cidadãos conscientes e comprometidos com a democracia.

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As primeiras eleitoras do Brasil, em Natal, no Rio Grande do Norte, posando para foto em 1928 Natal (RN)/Arquivo Nacional/Reprodução

A relação da mulher brasileira com a política e na política pode ser explicada levando em conta a linha do tempo feminista no Brasil. Em 25 de outubro de 1927, o Rio Grande do Norte foi o primeiro estado brasileiro a reconhecer o alistamento eleitoral feminino, mas foi apenas em 1932, com a nova lei eleitoral, que as mulheres de todo o Brasil conquistaram o direito de participar do mundo político. Desde o início da emancipação feminina no país, marcada oficialmente pela criação da Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher, em 1920, idealizada pela ativista e cientista Bertha Lutz, as mulheres tiveram que lidar com o machismo estrutural da sociedade patriarcal, que não via como um direito feminino o de estar no poder, governar e adquirir conhecimentos além daqueles que eram ensinados na escola, envolvendo prioridades como corte e costura, e tarefas domésticas. “A permanência e a insistência de um tipo de argumento baseado na incapacidade feminina para lidar com o mundo público e político é encontrado em vários momentos da nossa história. Piadas, charges e zombarias das mais diversas eram utilizadas como uma forma de inibir/desacreditar/humilhar as mulheres que procuravam se inserir no espaço público e tiveram ampla difusão na imprensa do país”, explica a historiadora Mônica Karawejczyk no artigo O voto feminino no Brasil, de 2019.

Essa herança de gênero, somada a questões raciais, nos assombra até hoje. Dados do Tribunal Superior Eleitoral, organizados pela plataforma 72 Horas, alertam que, apesar de serem maioria nas eleições deste ano, as candidaturas negras receberam 42% menos dinheiro de fundos Partidário e Eleitoral que candidatos brancos. Ou seja, do total de R$ 1,1 bilhão provenientes dos fundos públicos, 36% foram destinados a candidaturas de negros contra 63% destinados a candidaturas de brancos. Além disso, apesar de candidaturas negras serem maioria em 2020, as mulheres ainda são minoria dentro desse grupo, tendo maior destaque na região Norte, não coincidentemente, aquela que reconheceu primeiro na História o alistamento eleitoral feminino. “Ser uma candidata jovem, mulher e negra torna tudo mais desafiador, pois a gente acaba sofrendo uma série de preconceitos, desde pessoas tentando minimizar sua capacidade até gente querendo te descredibilizar pelo gênero. A gente tem que se esforçar às vezes cinco vezes mais para poder ganhar um espaço”, levanta a voz Luma Menezes, de 25 anos, candidata à vereadora de Alagoinhas, no interior da Bahia, em entrevista para a CAPRICHO.

Resistência política

Votar em candidatas mulheres, assim como contemplar bancadas que tenham propostas em prol de minorias, é contribuir para a criação de uma nova perspectiva, que contemple menos uma parcela poderosa de homens cis, brancos e ricos, desmistificando de uma vez por todas aquela figura que perpetua nosso imaginário, de que quem faz política é aquele senhor engravatado, já bem de vida, que carrega uma pastinha de couro (que nem sintético é) na mão. Ele pode até trazer pautas femininas em seus discursos, mas por que votar nele quando você pode votar em uma mulher que carrega pautas femininas consigo desde o seu nascimento? “O movimento sufragista surgiu como uma resposta direta à exclusão das mulheres da política, arena na qual as leis são feitas. Algumas mulheres passaram a acreditar que as muitas desigualdades legais, econômicas e educacionais – contra as quais se confrontavam – jamais seriam corrigidas enquanto os homens não tivessem que prestar contas a um eleitorado feminino. Assim, resolveram se unir para, juntas, lutarem por seus direitos. O que distinguiu o movimento, em todas as partes em que ocorreu, era que mulheres, de diferentes classes, raças, de graus de instrução e riqueza das mais diversas, se uniram em torno do mesmo objetivo, pois apesar das diferenças todas eram iguais na exclusão do mundo político”, explica a historiadora Mônica Karawejczyk.

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Além disso, é legal você também saber que existe uma agenda na ONU chamada 50-50, com políticas públicas que pretendem até 2030 construir um cenário mundial mais igualitário entre homens e mulheres. Como explica o site Politize!, “a Plataforma 50-50 estimula o debate e contribui para que possamos reparar essa desigualdade [racial e de gênero] construída historicamente”. Se hoje somos 52% da população e do eleitorado brasileiro, somos menos de 15% dos representantes no Senado. “A questão dos jovens não participarem da política hoje tem a ver com a falta de renovação política. A gente olha para o Congresso e para todas as instâncias do poder, e vê as mesmas pessoas sempre e, no máximo, os filhos e filhas delas. Impossível não se desmotivar olhando isso eleição após eleição”, pontuou Julia Rensi, co-fundadora do Mapa das Mina, que promove a importância do voto em mulheres, para a Fundação Heinrich Böll, em 2018.

Rafaela Boani, de 21 anos, candidata à prefeitura de Diadema, município de São Paulo, é a brasileira mais jovem a concorrer ao cargo. “É uma enorme responsabilidade, principalmente em uma cidade que nunca teve uma prefeita mulher. Essa luta mostra que a política deve ser ocupada por quem tem vontade. Que mais mulheres ocupem seus espaços e resistam, pois lugar de mulher é onde ela quiser!”, disse em entrevista para a CAPRICHO. A candidata à vereadora Luma Menezes concorda com o posicionamento da colega: “A importância de uma candidatura jovem na minha cidade tem muito significado, principalmente por ser uma candidatura feminina jovem. Ao longo de toda história de Alagoinhas, nós só tivemos oito mulheres eleitas vereadoras e, infelizmente, nossa Câmara Municipal é composta majoritariamente por homens brancos de 50 anos ou mais. O reflexo é uma juventude que não busca se envolver na política nem quer estudar sobre o assunto. É urgente ocuparmos esses espaços nas câmaras, nas prefeituras, nas assembleias legislativas, pois são espaços que são feitos por homens e pensados para homens. As nossas prioridades e necessidades como mulheres acabam ficando em segundo plano dentro desses locais“.

A mudança vem com a mudança. Fazer uso do seu direito ao voto, não achar que é só mais uma na multidão, pesquisar as propostas dos candidatos, repensar seu voto naquele “homem padrão”, só porque seus pais votam nele, e apostar em vozes jovens, em especial, de mulheres, que contemplem pautas raciais e de gênero, é o começo de uma resistência liderada por mais Leias e Reys, e por menos Darths e Lukes.

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