O que casos como o da Elisa Lam nos ensinam sobre linchamento virtual
O tribunal da internet às vezes julga muito com base em pouco, e o linchamento online, além de ser uma faca de dois gumes, pode fazer vítimas fatais
Existe uma coisa na internet extremamente perigosa e preocupante, e que não é a cultura do cancelamento – mas que caminha de mãos dadas com ela. Estamos falando do linchamento virtual. No geral, o ato de linchar, que é a “execução sumária de um criminoso pela multidão”, segundo definição do dicionário, na internet é muito diferente do ato de linchar alguém na vida real, porque existe uma tela separando a pessoa do alvo e, na maioria das vezes, protegendo sua identidade, mesmo que de maneira bastante questionável. Não é que não haja casos de linchamentos no mundo off-line, mas nem todo mundo que xinga muito no Twitter teria a coragem de xingar esse alguém da mesma forma se estivesse cara a cara com a pessoa. Palavras e atitudes poderiam ser filtradas, o que é completamente compreensível. Mas se o linchamento virtual já pode ser uma faca de dois gumes mesmo quando a sociedade estipula que o alvo é aceito, ou seja, que ele fez por merecer, imagina em casos em que o indivíduo que está na mira não cometeu nenhum crime?
Há pouco tempo, na Netflix, estreou o documentário Cena do Crime: Mistério e Morte no Hotel Cecil, que fala sobre o caso Elisa Lam, uma estudante canadense de 21 anos que desapareceu durante uma viagem a Los Angeles. Depois de muita investigação policial e teorias da conspiração, a causa da morte da jovem foi dada: afogamento acidental (os médicos acreditam que Elisa não morreu por suicídio). A garota foi encontrada na caixa d’água do Hotel Cecil dias após ter sido declarada como desaparecida. De acordo com as autoridades, a jovem, que era bipolar e já havia tido alguns surtos antes, como a família mesmo relatou, deve ter passado por um episódio alucinatório causado pelo transtorno mental e pela baixa dose de medicamentos que estava tomando.
A polícia de Los Angeles descartou em certo ponto da investigação a teoria de que a estudante teria sido morta. Mesmo assim, muito por causa do vídeo do elevador que viralizou na web e mostra as últimas imagens de Lam viva, detetives da internet continuaram batendo na tecla do homicídio. No meio do caminho, após ligar algumas pistas realmente bastante impressionantes, mas que não passavam de coincidências assustadoras, a internet achou um alvo: Pablo Vergara, cujo nome artístico na época era Morbid.
Há um ano, o fã de rock melódico havia postado no YouTube um vlog no Hotel Cecil. Ele também, coincidentemente ou não, lançou durante a época em que o caso Elisa Lam estava sendo investigado, o clipe de uma canção em que canta sobre uma chinesa que havia sido encontrada morta na água. A aparência do músico, que é mexicano, também foi bastante julgada, com uma galera dizendo que “ele tinha cara de assassino”. Pronto! Tudo isso bastou para usuários se unirem, denunciarem as contas de Morbid, que teve inclusive seu perfil banido do YouTube, e o bombardearem com comentários ofensivos e de ódio nas redes sociais. Na maioria das vezes, as pessoas diziam que ele deveria morrer pelo que tinha feito.
Por muito tempo, Pablo Vergara decidiu simplesmente desaparecer das redes. Depois, como explica no documentário da Netflix, viu que não ia chegar a lugar nenhum fugindo. O músico entregou várias provas à polícia de que não estava nos Estados Unidos quando Lam havia desaparecido (realmente, ele estava no México), sendo considerado inocente. O linchamento virtual cessou, mas engana-se quem pensa que o cantor nunca mais recebeu ameaças. “Você não pode ganhar, estão começa a formular caminhos para sobreviver. O meu foi virar completamente as costas para esse assunto, mas isso só aconteceu depois de eu tentar o suicídio. Chegou em determinado ponto que eu não via mais escapatória”, contou recentemente para a Loudwire. Vergara até hoje recebe mensagens de pessoas o acusando de ser o assassino de Elisa Lam, seja porque não acreditam no laudo final da perícia, seja porque seguem crendo em teorias conspiratórias.
Caso parecido aconteceu no caso Luka Magnotta, um serial killer em potencial que foi condenado à prisão perpétua após a morte de Jun Lin. A história dele é contada no documentário, também da Netflix, Don’t F**k With Cats: Uma Caçada Online. Apesar de os detetives das redes sociais terem tido um papel importante na identificação e na captura do criminoso, o tribunal da internet, em uma dinâmica bastante parecida com a envolvendo Pablo Vergara, fez outra vítima, só que dessa vez fatal: um homem que morava na África do Sul e que alguns internautas acreditavam ser a pessoa por trás dos crimes de Magnotta, que começou assassinando gatinhos por puro prazer e postando os vídeos na internet. Acontece que o alvo não era o criminoso. Algum tempo após o linchamento virtual, foi noticiado que ele, que sofria de depressão, havia morrido por suicídio. Apesar de em determinado momento o documentário dar a entender que o cara meio que endeusava o até então assassino dos gatos, não justifica.
Induzir ou instigar alguém a morrer por suicídio é crime
De acordo com a lei 13.968/19 referente ao artigo 122 do Código Penal brasileiro, “induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe auxílio material para que o faça” é crime, com pena que varia de seis meses a seis anos de prisão. A pena é agravada “se o suicídio se consuma ou se da automutilação resulta morte”. Além disso, “se o agente é líder ou coordenador de grupo ou de rede virtual” e/ou “se a conduta é realizada por meio da rede social de computadores, de rede social ou transmitida em tempo real”, a pena é aumentada até o dobro.
Supondo que a família de uma pessoa que cometeu suicídio encontrasse mensagens de ódio contra essa pessoa, contendo frases incentivando suicídio, salvas no computador dela, tais mensagens poderiam ser utilizadas como provas em inquérito para a apuração de crime e eventual ação penal, podendo os autores dessas mensagens responderem criminalmente pelas condutas.
A advogada criminalista Marília Scriboni, contudo, ressalta que são poucos os casos em que processos do tipo acabam sendo abertos. “Além disso, o suicídio não é considerado crime, seja ele tentado ou consumado. Porém, induzir ou instigar alguém a suicidar-se é“, explica a especialista, que acrescenta: “O tribunal da internet, no geral, opina muito com base em pouco, principalmente do ponto de vista técnico. Até mesmo em relação a casos que tramitam sob segredo de Justiça, cujos elementos e provas só são conhecidos pelas partes, as pessoas querem ter uma opinião”. Marília ainda alerta para o efeito manada que acontece no ambiente online, com as pessoas em geral apresentando a tendência de seguir um grupo.