‘Só morta entendi que para o mundo não sou igual a um homem’
Estudante paraguaia publica texto sobre turistas assassinadas a golpes no Equador e desabafa por todas nós.
No final de fevereiro, enquanto muitos comemoravam aquele dia extra proporcionado por anos bissextos, as famílias das jovens argentinas Marina Menegazzo, de 22 anos, e María José Coni, de 21, se questionavam aonde estavam suas meninas. As garotas haviam desaparecido na pequena cidade de Montañita, no Equador, durante uma viagem que faziam juntas. Juntas, não desacompanhadas. No dia 28, as famílias continuavam com o mesmo questionamento, mas, então, tendo a certeza de que as jovens estavam mortas. Os cadáveres foram descobertos e, logo em seguida, dois homens confessaram o crime: as turistas foram assassinadas com golpes.
A notícia deixou muitas pessoas revoltadas, assustadas, com medo. Mas, ao mesmo tempo, muitos culparam as jovens, mortas, pelo ocorrido. Afinal, onde elas foram se meter? Será que elas não procuraram por isso? A estudante paraguaia de comunicação Guadalupe Acosta, chocado com tais comentários, escreveu um texto em que se coloca no lugar das vítimas, que funciona quase como uma carta póstuma. A postagem do dia 1º de março, intitulada Ayer Me Mataron (“Ontem Me Mataram”), que você pode conferir na íntegra a seguir, viralizou nas redes sociais.
“Neguei-me a deixar que me tocassem e com um pau arrebentaram meu crânio. Me deram uma facada e me deixaram morrer sangrando.
Como lixo, me colocaram em um saco de plástico preto, enrolada com fita adesiva, e fui jogada em uma praia, onde horas mais tarde me encontraram.
Como lixo, me colocaram em um saco de plástico preto, enrolada com fita adesiva, e fui jogada em uma praia, onde horas mais tarde me encontraram.
Mas, pior do que a morte, foi a humilhação que veio depois.
A partir do momento que viram meu corpo inerte, ninguém se perguntou onde estava o filho da p#t@ que acabou com meus sonhos, minhas esperanças, minha vida.
Não, preferiram começar a me fazer perguntas inúteis. A mim, podem imaginar? Uma morta, que não pode falar, que não pode se defender.
Que roupa estava usando?
Que roupa estava usando?
Por que estava sozinha?
Como uma mulher quer viajar sem companhia?
Você se enfiou em um bairro perigoso. Esperava o quê?
Questionaram meus pais, por me darem asas, por deixarem que eu fosse independente, como qualquer ser humano. Disseram a eles que com certeza estávamos drogadas e procuramos, que alguma coisa fizemos, que deviam ter nos vigiado.
E só morta entendi que para o mundo eu não sou igual um homem. Que morrer foi minha culpa, que sempre vai ser. Enquanto que se o título dissesse ‘foram mortos dois jovens viajantes’, as pessoas estariam oferecendo suas condolências e, com seu falso e hipócrita discurso de falsa moral, pediriam pena maior para os assassinos.
Mas, por ser mulher, é minimizado. Torna-se menos grave porque, claro, eu procurei. Fazendo o que queria, encontrei o que merecia por não ser submissa, por não querer ficar em casa, por investir meu próprio dinheiro em meus sonhos. Por isso e por muito mais, me condenaram.
E sofri, porque já não estou aqui. Mas você está. E é mulher. E tem de aguentar que continuem esfregando em você o mesmo discurso de ‘fazer-se respeitar’, de que é culpa sua que gritem que querem pegar/lamber/chupar algum de seus genitais na rua por usar um short com 40ºC de calor, de que se viaja sozinha é uma ‘louca’ e muito seguramente se aconteceu alguma coisa, se pisotearam seus direitos, você é que procurou.
Peço a você que por mim e por todas as mulheres que foram caladas, silenciadas, que tiveram sua vida e seus sonhos ferrados, levante a voz. Vamos brigar, eu ao seu lado, em espírito, e prometo que um dia seremos tantas que não haverá uma quantidade de sacos plásticos suficiente para nos calar.”
Em janeiro, na Alemanhã, uma crise denominada Epidemia de Estupros chocou a população. Um comunicado divulgado pela ANUR (Agência da ONU para Refugiados) relatou que mulheres e meninas refugiadas estavam sendo estupradas por outros imigrantes em campos de refugiados como forma de chantagem, como moeda de troca para que elas fossem autorizadas a entrar em alguns países europeus. Na época, Vincent Cochetel, diretor do escritório do ACNUR para a Europa, disse que “muitas mulheres e meninas que viajam por conta própria estão totalmente expostas”.
“Não se viaja para escapar da vida, se viaja para que a vida não escape”, escreveu María José Coni na legenda de uma foto postada no Instagram dias antes de ser assassinada. Há uma coisa que nos liga, seja você Marina ou María, turista ou refugiada, idosa ou adolescente: somos todas mulheres. E, sim, estamos todas vulneráveis a tais atos de covardia, de violência, seja em Montañita, no Equador, na Alemanha ou na esquina de casa.
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