Luzes do Norte, a primeira fantasia sáfica nacional publicada pela Galera Record, foi lançada em março deste ano e já está fazendo muito sucesso. Apresentando uma atmosfera mágica cheia de mistérios e reviravoltas, o livro conta a história de Dimitria Coromandel, a melhor caçadora de Nurensalem, que é contratada por um comerciante rico da região para proteger sua filha mais velha, chamada Aurora van Vintermer.
Quando as duas se conheceram, a conexão entre elas foi instantânea, só que Igor, irmão de Dimitria, também é apaixonado pela jovem. Para complicar ainda mais, uma série de assassinatos misteriosos começam a acontecer e um monstro se torna uma ameaça que a caçadora decide procurar.
A autora Giulinna Domingues, que mora nos Estados Unidos atualmente, conversou com a CAPRICHO sobre o seu processo escrita e compartilhou detalhes que a ajudaram a desenvolver a personalidade dos personagens e da ambientação da narrativa. “Me arrepiou dos pés até a cabeça e falei: ‘Isso é mágica, não tem outra explicação. Não tem como não ser'”, relembrou a autora sobre o que sentiu quando viu pela primeira vez a Aurora Boreal, sua principal inspiração para começar a escrever a história.
A escritora também compartilhou sobre como foi trazer duas mulheres sáficas para o protagonismo do enredo: “Eu amo que eu consegui explorar essa parte minha no meu livro porque eu sou uma mulher bissexual e queria muito ter lido uma história dessas naquela época em que estava escrevendo fanfic.” Para completar, ela também deu alguns spoilers do que está por vir em seu próximo livro, chamado Sombras do Sul.
Confira a entrevista completa com Giu Domingues:
CH: Para começar, falando um pouco sobre você, Giu, que já disse que sempre foi apaixonada por leitura e que sempre teve essa relação muito forte com a literatura. Quando começou isso? E de onde veio sua vontade de começar a escrever?
G: A minha relação com a literatura começou desde que eu era muito pequena mesmo. Eu sou filha única mas sempre quis ter um irmão ou uma irmã, mas isso nunca aconteceu, aí eu tentava deixar os meus pais culpados, jogando Banco Imobiliário sozinha, falando: ‘Nossa, como seria legal ter um irmão, uma pena que isso não acontece comigo…’
E nunca aconteceu, realmente, nunca rolou. Então, para mim os livros eram muito um refúgio. O meu pai lia para mim, tenho uma memória afetiva muito grande com leitura, desde muito pequenininha, eu me lembro de pegar os livros e ficar igual uma cena de filme: embaixo da coberta durante a noite para os meus pais não verem que eu não estava dormindo.
Sempre fui uma criança muito dada às artes, eu gostava de desenhar, o dia que eu mais gostava na escola era o dia da fantasia porque essa coisa de mundo fantástico, de performar, era muito parte de mim. Eu não me lembro quando comecei a escrever. Acho que comecei a escrever quando comecei a ser eu. Eu me lembro desde muito pequena, quando tinha tinha 6 ou 7 anos, aprendi a escrever e passei a escrever minhas próprias histórias.
E aí, lembro que na 2ª série, eu e minha amiga fizemos um quadrinho em que nossas cachorras eram espiãs, meu primeiro trabalho autoral, sabe? (risos) Eu me divertia e fui ficando um pouquinho mais velha e comecei a ler muito. Eu levava meus livros preferidos para a escola, ficava lendo ao invés de prestar atenção na aula de matemática. Era a minha coisa preferida de fazer. Inclusive, ainda é a coisa que ainda mais gosto de fazer. Especialmente, ler fantasia, eu amo ler fantasia, é a melhor coisa do mundo.
Mais ou menos nessa época, quando eu tinha 12 ou 13 anos, eu comecei a jogar RPG online e na época era de Harry Potter, que eu gostava muito, e eu escrevia, brincava que ‘agora estou andando em Hogwarts’ e meio que isso se tornou indissociável, essa minha vontade de escrever e criar mundos com o meu amor pela fantasia. Aí fui escrevendo fanfic, comecei a escrever minhas próprias histórias, até chegar nos personagens originais, que de originais não tinham nada. Era tipo eu no mundo do Senhor dos Anéis e o Aragorn, o Legolas e a Arwen eram apaixonados por mim. (Risos)
CH: Falando dessa sua relação com RPG e fanfic, então era mais de Harry Potter que você se inspirava?
G: É, eu gostava muito de Harry Potter, como acho que várias pessoas da minha geração. Infelizmente, hoje em dia é muito difícil falar de Harry Potter porque a autora se revelou uma pessoa transfóbica e terrível, mas eu gostava muito. Tenho até uma tatuagem de pomo de ouro. Então jogava muito RPG de Harry Potter e escrevia muita fanfic. Mas eu também escrevia fanfic de Naruto, de Final Fantasy, de Jovens Titãs. Porque uma pessoa nunca é nerd em uma coisa só, né? Ela tem que ser completamente nerd! (Risos)
CH: Agora sobre Luzes do Norte, é uma fantasia nacional cheia de mistérios, romances e reviravoltas, tudo nesse clima mágico que você comentou, nessa ambientação que traz a fantasia para atmosfera. Como foi desenvolver esse universo do livro?
G: Primeiro que eu não sei escrever nada que não tenha um pitada de magia. Eu penso que se vou escrever, por que não colocar o mundo mágico? Eu moro nos Estados Unidos e fui viajar para o Alasca em 2017 quando a ideia para Luzes do Norte surgiu. Eu queria muito ver a Aurora Boreal, era o meu sonho e eu fui com a minha mãe. Quando chegamos lá, a gente fez um tour em que você meio que caça a Aurora Boreal, porque é como a chuva, não tem muito como prever onde ela vai aparecer exatamente. Era uma madrugada fria, a mais fria da minha vida, e eu estava com muitos casacos em uma vanzinha caindo aos pedaços, indo no meio desses campos nevados longe da cidade.
De repente, a gente parou, desceu do carro, olhou para cima e eu vi meio que uma névoa, parecia uma nuvem. Essa nuvem foi ganhando cor, ganhando forma e foi a primeira vez que eu vi a Aurora Boreal. Isso me tocou muito forte. Esse mundo gelado, essa tundra e essa neve. A neve abafa todo som, então parece que você está entrando em um lugar escondido. Você quer falar mais baixo porque tudo parece que é mais escondido, sabe? E essa atmosfera, principalmente a Aurora Boreal, me tocaram demais. Me arrepiou dos pés até a cabeça e falei: ‘Isso é mágica, não tem outra explicação. Não tem como não ser.’ E essa foi a semente para Luzes do Norte. Eu pensei que se a lua cheia é capaz de transformar as pessoas em lobisomem, como a Aurora Boreal não vai ser capaz de transformar alguém?
CH: No livro, temos também uma história de amor muito bonita entre duas mulheres sáficas. Como você descreveria o relacionamento da Aurora e da Dimitria para quem ainda não leu o livro?
G: Eu amo que eu consegui explorar essa parte minha no meu livro porque eu sou uma mulher bissexual e queria muito ter lido uma história dessas naquela época em que estava escrevendo fanfic. O relacionamento da Aurora e da Dimitria é meio que duas partes de mim. Uma parte é corajosa, impulsiva e fala o que pensa, que é a Dimitria, a caçadora mais talentosa da região e que sustenta a família dela com a caça. E a Aurora é a parte mais quieta, que tem que agradar todo mundo, que meio que se esconde atrás da posição dela para não fazer escolhas difíceis. Não que eu tenha uma grande posição, mas é mais essa parte de querer agradar todo mundo.
A Aurora é filha de um mercador muito bem relacionado e rico da região e as duas meio que são esses opostos. Só que desde o início, elas sentem uma química imediata e desejam liberdade, elas têm esse desejo muito latente. E é isso que traz as duas para perto, a Aurora não é uma princesa, mas é uma relação de princesa e chefe da guarda, de certa forma, em que as duas aprendem a proteger uma à outra.
CH: Aproveitando que você falou sobre isso, percebi que no livro a Aurora sente que quer ser livre e até cita algumas vezes em que acha que a Dimitria tem essa liberdade. Mas por outro lado, às vezes eu sentia que a Dimitria estava presa nesse sentimento de achar que não podia se apegar a ninguém. Como foi o processo de desenvolver esses traços de personalidade de cada uma?
G: Essa era uma parte muito importante pra mim porque é muito fácil imaginar como uma princesa em uma torre, que é a Aurora, se sente presa, mas isso vem de um lugar de muito privilégio da Aurora e quando a gente olha mesmo a nossa sociedade, uma coisa para se refletir é como todo mundo está preso de certa forma, especialmente se você não tem acesso a algumas coisas ou tem certas obrigações.
Ambas [Aurora e Dimitria] vieram de muita introspecção. Eu amo fazer terapia, é uma das partes mais importantes da minha vida e tive esse processo de entender como eu achava que era presa nas expectativas dos outros sobre mim. Eu sou filha única, como falei, então tem todo esse peso de querer dar orgulho para minha família, para os meus pais. De querer que todo dinheiro e todo o esforço que eles investiram na minha educação tenham um retorno para eles. Isso tem uma parte muito legal mas tem uma parte muito grande de culpa.
Eu queria muito refletir isso tanto na Dimitria quanto na Aurora. Essa coisa de ter passado por muitas coisas duras e ter medo do amor e do afeto, é algo que percebo muito em mim mesma. Eu me percebo muitas vezes rejeitando uma coisa, sendo que ela nem começou, porque não quero dar o poder pra ela me machucar. E eu acho que isso é muito comum. Além disso, gosto de romances em que os conflitos sejam assim, internos, sabe? Acho que tem vários romances em que o conflito envolve ciúmes ou triângulo amoroso – não que Luzes do Norte não tenha um triângulo, de certa forma, ele tem – mas eu queria que os conflitos fossem muito mais internos porque acredito que isso é muito autêntico das relações humanas.
CH: Sim, acho que o triângulo é muito interno porque a Dimitria priva até mesmo a outra ponta do triângulo de saber o que está acontecendo.
G: Exato! E essa parte foi inspirada na minha própria vida, uma situação da minha adolescência que foi horrível, então também queria trazer isso para a história.
CH: Giu, seu livro está recebendo uma resposta muito legal do público. Você está recebendo comentários de pessoas que se identificam com a sua história? E como foi receber esse amor da galera?
G: Está sendo surreal. Não consigo acreditar que a menina nerd que levava Senhor dos Anéis para ler no colégio, escreveu o próprio livro e uma história que achei que só eu ia gostar. Escrevi essa história principalmente para mim. Eu escrevo porque me sinto sozinha, eu tenho muitos amigos, sou muito abençoada nesse sentido, mas eu me sinto só. E essa sensação de solidão é o que coloco nas minhas histórias. Então, ver que elas alcançaram as pessoas e que eu não estou só é muito poderoso, muito.
Cada mensagem que recebo, cada nota de carinho, cada pessoa falando que se reconheceu na Dimitria ou na Aurora e que ficou surpresa pelo mistério, é muito engraçado porque, como escritor, você telegrafa uma história do passado na esperança que ela alcance um coração no futuro. E é uma coisa muito louca porque você escreve com seu teclado, computador e é isso, mas tem muito sentimento envolvido e é muito difícil contar o que cabe em um coração e como esse coração chega na palavra e na outra pessoa. Saber que isso chegou, não sei se tem sensação igual.
Quando Luzes do Norte chegou em casa, eu já tinha visto fotos e etc, mas quando chegou e peguei ele na mão, foi exatamente a mesma sensação que eu tive quando eu vi o meu marido no altar. Foi a mesma sensação de: ‘Meu Deus!’ É uma sensação maior que eu, não tenho palavras. O que me deixa muito feliz é saber que é um romance sáfico, entre duas mulheres, que eu precisava muito ter lido quando tinha meus 15 ou 16 anos.
CH: E dando uma stalkeada nas suas redes, vi que você criou uma playlist da Taylor Swift para Luzes do Norte. É uma artista que você escuta bastante quando está escrevendo?
G: Eu amo a Taylor. Amo muito a Taylor. Acho que ela é uma das pessoas que melhor escreve músicas no mundo. Eu acho que ela coloca muito o coração nas letras dela e me acompanhou muito a vida inteira. Ela me acompanhou quando eu tinha 16 anos e estava apaixonada pelo filho do pastor que não me dava bola no intercâmbio no Canadá e ouvi o CD dela inteiro chorando por aquele primeiro amor adolescente. E ela me acompanhou ano passado quando relançou as músicas dela e me senti de novo uma adolescente. A Taylor, pra mim, tem muito a ver com história de amor.
A playlist que eu fiz é uma música dela para cada capítulo. Porque acredito que essa coisa quase meio etérea, meio mágica, meio visual, meio sensorial de amor que a Taylor descreve é algo que queria muito que estivesse no meu livro. Eu não costumo ouvir música com letra quando escrevo porque me confundo, mas coloco o fundo instrumental das músicas. Ouvi muito o evermore e o folklore, não quando estava escrevendo porque isso foi em 2017, mas quando estava fazendo divulgação, falando do livro…
CH: E você disse que começou a escrever a história em 2017, quanto tempo durou esse processo?
G: É que tem muita coisa entre o começo e o final, mas eu comecei a escrever em 2017 e terminei de verdade no meio de 2020. Ao longo desse processo, eu reescrevi ele duas vezes. Eu mandei para leitores da indústria para fazer leitura crítica, voltei e reescrevi mais uma terceira vez, aí ele passou por revisão e tal. Quando senti que realmente que estava pronto, foi no meio de 2020. Foi um tempão com a história dentro da minha cabeça, mexendo nos personagens, e ela evoluiu muito desde então. É um processo muito legal porque você sente que a história vai ganhando corpo. No começo é só um amontoado de palavras, parágrafos e às vezes pontuação (risos), e aí ela vai virando uma ‘coisa’ mesmo, uma história.
CH: Nesse processo de ir mudando várias coisas, a reviravolta sempre foi a mesma? Você já começou a história imaginando isso?
G: 100%, eu já sabia o que ia acontecer. O que mudou foi que coloquei pistas ao longo da história para que não ficasse tão óbvio e desenvolvi alguns outros personagens, explorei mais também, mas sempre soube o que ia acontecer porque é a parte da história que eu quero contar. Não quero dar spoilers mas eu sabia que a base da história era caçadora e aristocrata, triângulo amoroso com o irmão e o plot twist final, isso eu sabia que queria que acontecesse. Era muito importante pra mim que fosse exatamente assim.
CH: O que você pode contar pra gente de Sombras do Sul? Agora pode dar spoilers se quiser! (Risos)
G: Sombras do Sul é o melhor livro que já escrevi. Modéstia à parte, ele está muito legal. Ele é inspirado nas minhas viagens especificamente para o sul dos Estados Unidos, para New Orleans. Então, ele se passa no sul da Rômandia, que é esse continente onde fica Nurensalem, e no sul é muito calor, você tem pântanos e é um universo totalmente diferente de Nurensalem. Eu aprofundei muito mais esse mundo. Tem muito mais personagens e magia, mas o coração da história é um romance. Pode esperar muito romance e sofrimento, porque a gente gosta de sofrer, dar aquela choradinha, com o coração dolorido, coração quentinho mas dolorido. Estou muito, muito ansiosa para ver o que as pessoas vão achar.
Para fechar, 3 indicações nacionais da Giu Domingues:
1. As Bruxas do Meu Quintal, Pablo Praxedes
2. Enquanto eu não te encontro, Pedro Rhuas
3. A noite cai, Camila Cerdeira
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