Origem do ‘cropped’ tem mais a ver com contracultura do que você imagina
Investigamos a história da peça que, embora seja associada ao armário feminino e à comunidade queer, já foi símbolo de força para homens héteros também
rotagonizado por jovens que valorizam a liberdade de ser quem são e desafiam padrões de gênero, o retorno do top cropped ao armário masculino tem sido um assunto recorrente no mundo da moda. Hoje ele faz parte do que é entendido como feminino, mas descobrimos que a peça já foi símbolo de força para homens héteros no passado também, viu?
Em entrevista à CAPRICHO, Marcio Banfi, stylist e professor do curso de Moda da Faculdade Santa Marcelina, conta que o top cropped começou a surgir em produções masculinas a partir de uma apropriação feita pelo futebol americano – e temos certeza de que isso talvez nunca tenha passado pela sua cabeça, leitor e leitora da CH.
“As camisetas tinham ombreiras e ficavam curtas. Os meninos mais ousados e modernos acabaram se utilizando da peça e, depois disso, as marcas mais descoladas, de surf e outros esportes, fizeram versões já estilizadas com modelagens mais próximas ao corpo. Isso acontecia principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra”, conta.
Curioso, né? Mas embora o sucesso do top cropped comumente seja associado à década de 1980 e 1990 – principalmente disseminada pelo mundo fitness, artistas e a cultura pop -, sua origem, na verdade, vem antes disso.
A influência mais primitiva da peça pode ser relacionada ao século 19 e ao figurino da dança do ventre, típica da região do Oriente Médio, em que a barriga das mulheres ficava à mostra. Depois disso, a roupa curtinha acima da linha do umbigo integrou o armário feminino durante os anos 1940 e 50, acompanhada de uma parte de baixo de cintura mais alta.
Para o mundo ocidental, no entanto, o top ainda era considerado ousado e revelador demais. E foi apenas com a ‘revolução sexual’ dos anos 1960 e 70, contexto que envolvia a invenção da pílula anticoncepcional e o debate da pauta da emancipação feminina, que ele ficou popular.
Nessa época, modelos e personalidades que estavam em evidência, como a atriz britânica Jane Birkin, começaram a fazer um nó em suas blusas, deixando-as mais curtas, e o movimento hippie se apropriava da peça como mais um símbolo de rebeldia e de contracultura. Em seguida, na década de 1970, o comprimento que mostrava a barriga também foi um código marcante em produções da cantora americana Cher.
Quando a onda da ginástica aeróbica teve seu boom em 1980, a moda ‘fitness’ contribuiu para que o top cropped atingisse seu auge até então. O filme Flashdance – Em Ritmo de Embalo (1983) e o look de Madonna no clipe da música Lucky Star influenciaram a difusão da prática de cortar as próprias camisetas e deixar a barriga aparecendo.
Uma chuva de referências na cultura pop
Durante as décadas de 1980 e 90, o top cropped era visto como uma representação da masculinidade e do porte atlético. No filme Rocky III – O desafio supremo (1982), por exemplo, o ator Carl Weathers, que interpreta o boxeador Apollo Creed, aparece de camiseta cropped regata azul, assim como Adam Sandler usa uma camiseta cortada do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) em Os Cabeças-de-Vento (1994).
Já na série de comédia O Maluco no Pedaço (1990-96), Will Smith também veste uma camiseta cortada do time de basquete norte-americano Philadelphia 76ers. No Brasil, vimos a peça ser usada por Supla no filme Uma Escola Atrapalhada (1990).
“Não podemos esquecer que, nesse período, as camisetas chamadas ‘baby look’ também pertenceram a garotos. Algumas delas eram curtas e mostravam um pedaço da barriga”, acrescenta o professor Marcio Banfi.
Aos poucos, entretanto, o significado do top cropped foi mudando no imaginário coletivo. Um dos fatores que impulsionou esse fenômeno foi o cantor Prince, considerado um dos primeiros homens a colocar peças curtas que deixavam a barriga à mostra fora do cenário esportivo, como podemos ver em suas apresentações, videoclipes e até na capa do álbum Parade (1986). Na década de 1990, Lenny Kravitz foi outro artista que chamou a atenção ao trazer a camiseta justa e cortada para o contexto da música.
Logo, a peça foi parar em campanhas publicitárias de marcas como Calvin Klein, em que apareciam em homens de um jeito considerado ‘sensual’, e entrou de vez no mercado da moda.
Nesse sentido, o top cropped se distanciava da virilidade e da imagem de força tanto almejada por homens heterossexuais, e, assim, tornava-se uma peça tradicionalmente vista como feminina (e também queer).
Isso ficou ainda mais evidente nos anos 2000, quando as blusas curtinhas eram combinadas com calças de cintura baixa por diversas figuras femininas, enquanto o guarda-roupa masculino era repleto de silhuetas oversized.
O retorno ‘comercial’, mas também questionador do cropped
A partir dos anos 2010, o top cropped teve um grande retorno e, desde lá, recebeu atualizações de acordo com as tendências, mas nunca saiu do radar das celebridades e do street style. Nos últimos tempos, com a evolução de conversas sobre masculinidade tóxica e moda sem gênero, a peça voltou à tona em looks masculinos e também às passarelas e coleções de várias grifes.
Em 2014, por exemplo, o rapper Kid Cudi escolheu uma camiseta cropped vermelha para subir ao palco do Coachella. Depois disso, vários artistas que entendem que uma roupa não determina sua orientação sexual ou identidade de gênero apareceram usando cropped – Bad Bunny, Harry Styles, Jaden Smith, Lil Nas X, Yeonjun (do grupo TXT) e outros idols do K-pop. Nesse contexto, investir nesse estilo de roupa, que por tanto tempo foi considerado feminino, também demarca um posicionamento político.
O cropped tem dado o que falar
Apesar de ter começado em um meio muito masculino, atualmente, homens utilizando cropped não são tão bem vistos assim. Você deve se lembrar que na edição desse ano do Big Brother Brasil, o ator Gabriel Santana entrou na casa vestindo uma camiseta cropped branca e, dentro e fora do programa, se mostrou um grande adepto da tendência – mesmo sendo criticado e recebendo comentários extremamente homofóbicos nas redes sociais.
Meses depois, João Guilherme foi alvo de críticas nas redes sociais ao posar com um casaquinho cropped durante a semana de moda masculina de Paris. “A tentativa de me ofender ao dizer que eu sou gay não só não me ofende nem um tiquinho, como me dá ainda mais vontade de ser um aliado presente e ativo na causa [LGBT+]”, respondeu o ator em publicação.
Pois é. Quando a gente olha para a história dessa peça, vemos como a moda se relaciona com estereótipos tradicionalmente descritos como femininos ou masculinos, e qual a ligação disso com uma sociedade machista e preconceituosa.
Apesar de vivermos em uma realidade ainda extremamente machista, a nossa galera continua sendo agente de uma possível transformação, mesmo que a longo prazo, para romper barreiras e quebrar padrões já ultrapassados, inclusive na moda.