Esse é o último texto que eu vou escrever sobre a minha viagem à Kigali, em Ruanda, na África (e, claro, os outros você pode ler aqui e aqui). Foi uma semana relatando para vocês, leitores de CAPRICHO, como foi minha experiência vivenciando a Women Deliver Conference, o maior evento global sobre gênero do mundo. Mas esse texto não é sobre isso.
Aos poucos, a gente vai digerindo as coisas e esse texto aqui que você aí do outro lado está lendo, sem dúvidas, foi o que mais demorou para sair. E eu explico por quê: para mim, viajar até o continente africano significava atravessar o oceano Atlântico e me conectar com as minhas raízes. E de certa forma foi. Mas foi sobre entender o quanto eu sou latina e que compreender o que são os direitos humanos é também um processo de autoconhecimento e vulnerabilidade.
Acho bem verdade quando dizem que nós pensamos onde nossos pés alcançam. Ruanda representa tudo que eu penso sobre norte global, ajuda humanitária e política. Entrar no “Memorial do Genocídio” mudou a minha vida. Para quem não sabe, Kigali especificamente foi palco de um genocídio entre povos Tutsis e os Hutus – ambos povos africanos e que habitavam por ali.
Esse momento da história é retratado em vários filmes mas, um dos mais famosos é o “Hotel Ruanda”, que conta a história do gerente de um hotel que, em meio à guerra entre os povos, tomou a decisão corajosa de abrigar sozinho mais de 1.200 refugiados do próprio país (e está disponível da Amazon Prime, viu?).
Tudo isso aconteceu lá em 1994 e foi promovido por uma política de segregação com uma lógica colonizadora para controlar a população em uma estratégia para não houvesse resistência aos “neocolonizadores”. Ou seja, colocar uns contra os outros foi uma estratégia de dominação. O principal país europeu envolvido nesta questão foi a Bélgica, com focos comerciais.
Europeus utilizavam argumentos baseados no chamado darwinismo social – uma teoria popular naquele tempo – para justificar os privilégios concedidos aos Tutsis, afirmando que eles eram inerentemente superiores, como uma forma de legitimar sua exploração e dominação. E olha só no que deu: no final de 1994, cerca de 800 mil Tustis foram mortos no conflito com Hutus.
Na época, foram enviados inúmeros relatórios humanitários à ONU. Neles, havia o indicativo de que continuar com esse conflito era o pior caminho – mas não houve comprometimento e a organização chegou até a pedir desculpas anos depois.
Quem comanda o país hoje é o presidente Paul Kagame. Ele está no poder há 23 anos – sim, desde os anos 2000 – e fez parte da Frente Patriótica Ruandesa que tomou o poder após 1994. Seu governo tem muitas controvérsias, mas ele é considerado unificador. Ah, e importante pontuar: ele é de origem Tutsi e foi um dos refugiados dentro do próprio país.
Voltando à conferência. Pois é, com todo esse contexto eu estava lá participando de um dos maiores eventos sobre direitos das meninas e mulheres do mundo, envolvendo ONGs e organizações da sociedade civil. Eu vi o Kagame de perto. Passei em frente à sua casa. Não entendo, nem entenderei como deve ser criar o senso de pertencimento em um pós-guerra. Há uma memória traumático em todos os cantos: existem lugares que fotos não são permitidas; a história nas galerias de arte, as pessoas e como elas agem e se definem e, principalmente nas meninas e mulheres jovens que conheci.
Eu não encontrei as minhas raízes em Ruanda, mas vi cenas muito familiares: notei algumas ruas muito semelhantes ao interior da Bahia, onde minha família mora; as pessoas se vestem com roupas bem coloridas como em Salvador, de onde eu venho. Mas tirando isso, tudo era diferente e me fez refletir sobre nosso papel na ajuda humanitária, poder democracia, tudo (na real, eu só faço pensar desde que eu voltei!)
E é muito bom poder ver o que a gente acredita mais solidificado da forma que eu fui: não paro de pensar na alternância de poder, memória, poder popular… Mas sem cometer erros “ocidentalistas” ou um olhar enviesado para a África, sabe? Lidar com direitos humanos é realmente se autoafirmar (em nação, soberania, autonomia de estado), mas também é ver além disso.
É não se calar perante as injustiças e violações de direitos em nenhuma circunstância. E caraca, que mundão grande esse. Ainda bem que tem muita gente boa trabalhando, e gente jovem pensando nisso. Porque, afinal, a primeira condição para se mudar a realidade consiste em conhecê-la, viu? Anote aí.